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segunda-feira, 20 de abril de 2020

NOSSA VIDA FUTURA



Que eu possa deitar debaixo das árvores na praça para olhar o céu rodando.
Que eu feche os olhos para decifrar o que os pássaros estão cantando.
Que eu conte as aves que vão na migração. 
Que eu mergulhe no mar, para debochar das ondas pequenas e me arrependa da soberba  com as ondas maiores. 
Que eu não tenha mais preguiça de passar protetor nas costas da esposa.
Que eu aceite, com exclamação infantil, os convites para passear. 
Que eu viaje para longe, sem repetir nenhuma canção na playlist.
Que eu me aventure em trilhas para dividir um sanduíche nas alturas. 
Que eu coloque a cabeça debaixo da cachoeira gritando de frio e de coragem.
Que eu cuide das pedras molhadas e descubra as sombras dos peixes. 
Que eu fique boiando, sentindo as cócegas do sol no rosto. 
Que eu perca o tempo de vista no bar com os amigos, lembrando do que vivi pelas histórias dos outros. 
Que eu tome banho de chuva, pisando nas poças de propósito. 
Que eu volte a ver meu time no estádio lotado e enlouqueça na hora do gol. 
Que eu retorne a minha pelada nas segundas passando mais a bola. 
Que eu prepare um churrasco, convidando mais gente que o número de pratos no armário e esquecendo aberta a porta de casa. 
Que eu veja, na calçada apertada, o quanto meus filhos cresceram, que não cabem mais ao meu lado. 
Que eu ponha os pais no colo, meus bebês grisalhos. 
Que eu compre roupa nova para alguma festa e desfrute do prazer de arrancar a etiqueta. 
Que eu dance até apertar os sapatos. Que esteja descalço no fim da balada. Que espere amanhecer para ir embora. 
Que eu me maravilhe de me despedir de cada pôr do sol. 
Que eu caminhe pelo bairro para apontar o comércio que não conhecia. 
Que eu manche a toalha de mesa dos restaurantes com vinho e farelos da minha gula pela vida. 
Que eu me comova na hora de oferecer um abraço, que o aperto seja sincero e definitivo, como o nó dos cadarços.
Que, no meio da rua, eu beije a boca de minha mulher com vontade de entrar em sua alma. 
Que eu ache bonita qualquer manifestação de carinho de estranhos, um aceno, mãos entrelaçadas, afago nos cabelos, que não sofra mais do medo da ternura. 
Que eu chore quando tiver vontade, ria quando não tiver vontade. 
Que a saudade de tudo me faça melhor do que antes.


Fabrício Carpinejar 
Publicado no jornal Zero Hora, GaúchaZH, 20/04/2020

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